segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

"Coisas espirituais", religião e "igrejas"

Alguém me perguntou em meu formspring o que acho sobre "religião, coisas espirituais e igrejas evangélicas", já que muitas vezes trato do tema com certo "deboche" ou "furor". Mas eu devo dizer que esse "deboche" tem muito mais de indignação, não sendo "deboche puro e simples", que se presta, como fim em si mesmo, a menosprezar e ridicularizar o outro. Não, não. Sinto que esse meu "deboche" tem um viés mais crítico e menos pessoal, embora eu reconheça que exagere por vezes. Essa pergunta do forms me motivou a postar sobre isso aqui, após uma eternidade em silêncio nesse blog que bomba mais que segunda de manhã, since 2009. s2s2s2

Sempre gostei desse tema: "religião", "espiritualidade". Então a pergunta me despertou  vontade de escrever sobre algo que já me chama a atenção desde há muito. Irei extrapolar e escrever sobre várias questões correlatas ao assunto proposto; portanto leia quem se interessa. Aos que com tudo se antipatizam e ofendem, peço para que não se deem o trabalho de ler essas linhas com divagações estudantis diletantes e febris, risos. Não tenho pretensão de esgotar nada, mas tão somente de externar algumas das questões que me parecem relevantes nessa seara.

Essa tema me chama muito a atenção e sempre chamou, até pelo fato de esse fenômeno social (relacionado à religião, à ritualística; ao próprio "espiritual") ser constante desde as civilizações datadas das épocas mais primevas. Essa coisa que se chama "espiritual" (numa perspectiva social) muda no decurso do tempo e se altera de meio social pra meio social, passando por diferentes roupagens externas - do politeísmo ou monoteísmo; das manifestações ocidentais às orientais, das tradicionalistas às sincretistas - - - contudo, ainda sim, a "busca" por algo que "transcenda o físico", independentemente da vertente cultural adotada, é algo que me parece faticamente constante no decurso dos milênios e séculos, em toda a humanidade, como fenômeno individual e coletivo.

Isso tem a ver com a própria condição humana, pulsional, incompleta, desamparada. O autor Freud fala sobre isso, embora não o conheça tão bem.

Uma perspectiva importante a ser considerada é aquela que encara as manifestações do "religioso" e do "espiritual" como meros produtos do social, do cultural, já que o homem é determinado culturalmente, sendo um ser "socialmente determinado". Outros asseveram, ainda, que sob a perspectiva do psicológico,  a religião (busca pelo espiritual) figuraria como espécie de "neurose", individual e coletiva, que atua como fuga, escape da realidade nua e crua, que é a realidade pulsional (Freud), biologicamente limitada e vulnerável (primazia do inconsciente; ausência de "centralidade"). Essa perspectiva também é lúcida e deve ser considerada para todos os fins. Contudo, não há verdades objetivas e absolutas nesse sentido, até pelo fato de o próprio "espiritual", se existe, fugir dos limites de nossa cognição. Nossa cognição é limitada biologicamente: limitações na audição, na visão, no tato, no paladar e no olfato. Há mamíferos ou mesmo animais menos complexos, que captam frequências de som e veen matizes de cores que não nos são acessíveis pelo corpo humano, de modo que a percepção humana do externo não é objetiva, tampouco definitiva. Kant, sobre isso, usa os termos "fenômeno" (que é o que captamos através da estrutura corpórea, cerceada pela limitação das próprias células que a constituem e adstrita aos cinco sentidos e às três dimensões) e "coisa em si".

Portanto, em matéria espiritual, não se sabe objetivamente: Se crê. Alguns podem alegar ter "certezas em matéria espiritual" ou mesmo "certeza de que nada existe em matéria espiritual", mas tais certezas (sejam relacionadas ao "crer" ou mesmo ao "não crer") são certezas meramente subjetivas. Podem ser, claro, legítimas em nível subjetivo. Mas podem ser também casos psiquiátricos. De todo modo, o "crer" ou "não crer" é a lógica aplicável ao chamado "espiritual". Creio que a lógica do "saber" (objetivo) não se aplica às "coisas espirituais", na medida em que objetivamente não captamos, pelo corpo humano, o que se chama "espiritual", se é que existe.

Considero o agnosticismo, por ex., bastante lúcido. O ateísmo, a seu turno, não me atrai, pois nega com pretensão de certeza ou de definitividade uma hipótese cujo objeto (o chamado "espiritual") simplesmente foge à cognição e aos sentidos humanos. Entre os dois, considero o agnosticismo bastante mais lúcido, embora respeite todos os posicionamentos. Não creio que certos ateus se posicionem com tanta paixão por desprezarem o "espiritual"; às vezes me parece o contrário: procuraram, não acharam e se revoltaram contra Deus, se é que "Deus" existe. Outros se revoltam com Deus, pois dizem que um Deus não permitiria genocídios, desigualdades, doenças em crianças, etc. Me parece mais uma revolta, uma inconformação subjetiva, do que um juízo objetivo. Tô bem "socrático", risos: tudo deve ser questionado, colocado sob dúvida, inclusive o próprio sujeito, rs. Quando penso que estamos a distância de milhões de anos luz do centro galáctico de nossa própria galáxia (Via Láctea), que é apenas uma dentre as bilhões de galáxias observáveis, considero que a inteligência humana não seja definitiva, mas ao contrário - débil e limitada: um cisco diante do universo tendente ao infinito. Já falam até em "multiversos" por aí. Isso ilustra a pequenez e a debilidade da inteligência humana, que é limitada por determinismo biológico e da qual tratou Kant falando sobre "estrutura cognitiva", "fenômeno" e "coisa em si". Agora: se existe algo de "espiritual", já são outros quinhentos e quem sou eu pra enunciar verdades. Impossível. Só fiz essa ponderação para reafirmar a limitação da cognição humana, limitação essa sobre a qual Kant tratou de modo interessante.

Fiz todas essas observações acima para, antes de entrar na matéria afeta às igrejas propriamente ditas, fazer os seguintes apanhados acerca das "coisas espirituais" (visão neutra, que assume sua limitação cognitiva diante de tais questões, se existem) 

1) Não há certezas em nível objetivo, seja no campo do "crer" ou do "não crer", quando se trata de matéria "espiritual", cujo objeto (o próprio "espiritual") foge da cognição do homem, que é limitada (Kant);

2) Pode ser que tudo relativo ao que se chama "espiritual" seja uma ilusão:

a) Seja essa uma ilusão de ordem "biológica/fisiológica"("desejo ou ímpeto pelo espiritual" visto como algum tipo de adaptação do próprio cérebro na evolução humana; adaptação essa que, quimicamente impulsionaria o homem a ter "esperanças espirituais", abrandando suas dores e conflitos psíquicos, o que ocasiona, inclusive, uma diminuição nas taxas de suicídio, o que preservaria a espécie, sendo favorável à evolução, tal qual concebida por Darwin;
b) Seja essa uma ilusão social/cultural ("espiritual" visto como mero produto da cultura, já que o ser socialmente determinado, sendo o espiritual/religioso meras construções das culturais, que são variáveis e distintas entre si);
c) Seja uma ilusão de ordem psicológica ("busca/identificação com o espiritual" desempenhando papel de neurose individual ou coletiva, que atua como escape da condição humana nua e crua; pulsional, tal qual é, sem subterfúgios ou "esperanças futuras")

 3) Por essas razões, ao nos debruçarmos sobre matérias que versem sobre o espiritual ou "metafísico" (quais são os fundamentos da realidade, da existência, quais são os fins da própria vida? etc.) necessário adotar raciocínio tendente a "inquirir" (inquirição, questionamento, investigação), e não raciocínios que "postulam verdades", seja no que se refere a crer nisto ou naquilo ou mesmo a "não crer". A "verdade" é apenas uma perspectiva subjetiva nessa seara. Aplicável às coisas espirituais, portanto, a lógica do "crer"- e não  do "saber" (objetivo), haja a impossibilidade de se analisar, com a estrutura corpórea do ser humano, se existem ou não "coisas espirituais", sendo-nos possível crer ou não, mas não saber ("Eu creio, mas não sei; "Eu não creio, mas não sei" - saber objetivo)

Esse textículo está ficando grande. Dei algumas opiniões acerca de como se analisar as supostas "coisas espirituais". E agora passarei para a questão afeta às igrejas. Tá muito grande o texto. Portanto, sua leitura é proibida aos que não queiram ler e aos melindrados, que se antipatizam ou ofendem com ou por tudo. Não percam tempo, até porque não tenho pretensão de esgotas temas, tampouco de enunciar verdades definitivas, mas tão somente analisar aspectos que me parecem relevantes ou marcantes. Pode ser que haja vários outros. Pode ser que eu mesmo, que agora escrevo, mude alguns posicionamentos com o tempo.

Passemos, pois, à questão das "igrejas", sobretudo a evangélica.

Vamos analisar a atual conjuntura ligada ao tema... Vou pegar o Brasil como parâmetro, porque estamos aqui. A Igreja Católica decai abruptamente nos últimos anos, embora esteja tentando se recuperar com o chamado "catolicismo carismático". A Igreja Protestante (Evangélica) ascende de maneira descomunal. Antes de falar mais, gostaria de acrescentar uma observação: o Brasil é, originariamente, um país de esmagadora maioria Católica, por influência portuguesa, cuja cultura religiosa se identifica com o tronco "judaico-cristão". Essa influência se impregnou em nosso seio institucional e nas entidades sociais, tais como a família, que é a propria matriz formadora do psiquismo infantil da indivualidade (ser humano).

Entretanto, apesar da predominância histórica do catolicismo, aqui no Brasil há um forte traço de sincretismo religioso, cujos efeitos afastam o nosso conceito de "ser Católico" do conceito tradicional e rígido do catolicismo 'originário'. Isso permite, portanto,  que as pessoas transitem com maior espontaneidade entre as mais diversas religiões ou manifestações afins, de modo que, por força desse sincretismo tipicamente tupiniquim, uma parcela (embora minoritária e alvo de algum preconceito, è vero) transita, inclusive, pelo nosso tronco cultural-religioso africano ou indígena. Aqui devo ressalvar que, embora a miscigenação brasileira comporte das mais inimagináveis combinações  étnicas ao longo de nosso território de proporções continentais, a matriz étnico-cultural base do Brasil se perfaz na tríade "áfrica, indígenas, portugual" - o autor Darcy Ribeiro fala bastante disso, inclusive.

Feitas essas ponderações, voltemos: em que pese o sincretismo tão marcante no Brasil,  a predominância atual gravita em torno do binômio catolicismo-protestantismo (evangélicos), o que só explicita a forte herança judaico-cristã européia, predominante em matéria de cultura in terra brasilis, seja em nível institucional ou não.

Agora, por que a Igreja Católica tem perdido tanta força, apesar de suas atuais tentativas de "missas carismáticas"? Pra responder isso, vamos analisar o público alvo, os adeptos, os fiéis de sua """rival""" (risos),  a "Igreja Evangélica". São, em maioria, indivíduos da geração anterior à minha (o equivalente a "meus pais") Ps: se você discorda, olhe ao seu redor. Quantos pais evagélicos você vê? E quantos avós evangélicos você vê? Pode até haver avós evangélicos, mas é menos comum e são geralmente "convertidos", ou seja, anteriormente católicos. Tais indivíduos são nascidos majoritariamente nas décadas de 50/60. Indivíduos esses que foram expostos a revoluções pró-liberdade individual (em que pese contexto ditatorial no Brasil), mas que ainda sim foram expostos  à dita "educação cristã" culturalmente arraigada. Repito: para as gerações de 50/60, houve, sim, o jugo da ditadura. Mas isso é muito relativo, pois aqueles que se adaptaram e não se engajavam politicamente, não raro sequer sentiam ostensivamente seus efeitos, embora o conservadorismo se encontre introjetado em toda sociedade e nos psiquismos individualmente considerados mesmo que de forma sutil. It happens... welcome to planet earth!

Logo: apesar de influências conservadoras, a existência de vanguarda jovem, que aderiu a marcantes movimentos pró-liberdades individuais contribuiu pra que essa geração (déc 50/60) desejasse quebrar alguns paradigmas desagradáveis, e aqui entra o paradigma de religião e da missa católicos, maçantemente hermético. A Igreja Católica oferecia o "contato com o espiritual" do mesmo jeito, desde há séculos, em ritualísticas engessadas. Tais imposições unilaterais, afetas à ritualística sem sentido, motivaram essa geração das décadas de 50 e 60 a buscar outras possibilidades em matéria de "espiritualidade". Daí surge com força a Igreja Evangélica, no momento certo, oferecendo dinamismo, recursos menos ortodoxos e entretenimento ao público - -  embora preservando dogmas básicos, não sendo, claro, tão "transgressora" em matéria doutrinária como um espiritismo, por ex., que traz perspectivas muito mais amplas do que já era "Posto" pelas "escrituras judaico-cristãs", embora seja, como elas, de matriz cristã. Talvez o Espiritismo não tenha se consolidado como "terceira via" em nível tão expressivo, justamente pelo fato de expandir por demais a ordem que já era posta, o que causa rejeição por parte do próprio sistema, que busca a estabilidade, sendo difícil romper a inércia quando se pretende "mudar ou inovar".

 Pois bem. Aí entra a Igreja Evangélica, com toda força: mantém dogmas básicos do que já era "posto" pelo sistema judaico-cristão; contudo, oferece maior dinamismo, ritualísticas menos ortodoxas, padrões mais humanos, algo novo à engessada e enfadonha ritualística católica; algo que interessou a essa geração originariamente católica - insatisfeita, mas que não abriria mão da "religião".

Desse modo, junta-se "a fome com a vontade de comer", já que estamos falando de pessoas culturalmente cristãs (originalmente católicas), mas que já não mais estavam satisfeitas com o hermetismo ritualístico secular da Igreja Católica, ansiando por maior dinamismo e novos recursos. O purismo da ritualística católica, que não se adaptava ao "novo" na perspectiva social, abafava aqueles que ansiavam por explorar algo além do externalismo vazio e inócuo em matéria de "espiritualidade". Daí, segundo penso, o "modus operandi" das instituições protestantes acabou ganhando essa "bolada".

Bolada porque, lamentavelmente, as coisas espirituais têm sido monetizadas - quando me refiro a "coisas espirituais", me posiciono agnosticamente, sem saber se existem ou não. Falo como símbolo, como cultura. Se existem as "coisas espirituais", não podemos sabê-lo objetivamente nesse tempo e nesse espaço, como já expus anteriormente. Essa pelo menos é minha visão.

A conclusão do último parágrafo foi: a igreja evangélica ascendeu em detrimento da  igreja católica. Está fazendo "mais sucesso".

Mas por que vosso humilde blogueiro acha que esse "sucesso" todo é provisório? Apesar da heterodoxia do "modus operandi" evangélico se comparada à milenar e engessada ritualística católica, as demandas conscienciais se renovam no decurso das gerações. Portanto, padrões afrontosos à razão tendem a não protrair no tempo. Na seara religiosa, nosso tronco é o judaico-cristão. Devemos considerar, contudo, que o cristianismo institucional (das igrejas ao longo dos séculos) é bem diferente do cristianismo proposto por "Jesus Cristo" (figura, personagem, arquétipo...)

O espiritual pode ser uma ilusão (o "impulso ou curiosidade espiritual" pode ser mero recurso da evolução para preservar a espécie; do mesmo modo, pode ser mera neurose que desempenha papel de fuga fuga psíquica da realidade pulsional). Ainda sim, mesmo que ilusório, é provável que tal "ímpeto" continue, se considerarmos os milênios pretéritos. Contudo, as vias pela "busca do espiritual" (que decorre do próprio inconformismo do homem com seu estado presente - Nietzsche) tendem a ser cada vez mais heterodoxas e plurais, adequando-se ao ser individualmente considerado. O próprio "não crer" é um posicionamento diante da "hipótese" do espiritual, tão antiga nas civilizações. Antes o "não crer" era rechaçado socialmente. Hoje, todavia, também é uma possibilidade -  o que demonstra estar sendo conferida maior flexibilidade ao homem em seu livre desenvolvimento da própria personalidade. Culturalmente, os questionamentos afetos a "quem somos, pra onde vamos, de onde viemos ou se existe algo além do biológico, do social e do cultural" são questionamentos existenciais que provavelmente não irão cessar, porque o ser humano tem sede por algo mais e não se conforma com sua condição presente. Como dito, Nietzsche fala um pouco disso, q se relaciona ao que chama de "eterno retorno" (Ewige Wiederkunft).